Opinião: Barbárie humana em tempos de estacionamento irregular
O que diz sobre nós, enquanto sociedade, um crime cometido por causa de uma vaga de
estacionamento? Em Palmas, um homem armado decidiu que a própria irritação valia mais do que a
vida de um trabalhador. E puxou o gatilho. Não foi um assalto, não foi uma disputa entre facções,
não foi uma “situação de risco”. Foi uma discussão banal, cotidiana, transformada em execução.
O vigilante Dhemis Augusto Santos, 35 anos, trabalhava quando pediu a um motorista que
respeitasse as regras do estacionamento. O que deveria ser apenas um diálogo firme, mas
corriqueiro, ganhou contornos de confronto pessoal. Minutos depois, diante de clientes, câmeras e
luzes artificiais de um centro comercial, Dhemis caiu, vítima de um disparo à queimar roupa. A cena, captada por imagens de segurança, não é apenas prova para um inquérito: é um
retrato da nossa barbárie.
Há algo profundamente doente em uma sociedade em que o caminho entre o desacordo e a
violência letal se encurta a esse ponto. A expressão “motivação banal”, repetida em boletins e notas
oficiais, parece técnica, mas é devastadora. Estamos dizendo, em outras palavras, que já não é
preciso muito para que alguém se sinta autorizado a matar: um cone, uma vaga, uma orientação de
serviço bastam. A incapacidade de lidar com frustrações mínimas sem recorrer à agressão extrema é
um dos sintomas mais claros da barbárie contemporânea.
A presença da arma de fogo nessa equação também não pode ser tratada como detalhe. Em
muitos casos, ela deixa de ser mero instrumento de defesa e se converte em extensão do ego. A arma
na cintura alimenta a ilusão de poder, de superioridade, de impunidade. Quando somamos a isso um
contexto em que status econômico, símbolos de consumo e sensação de “direito absoluto” se
misturam, o resultado é explosivo. A mensagem implícita parece ser: “se alguém me contraria, eu
imponho minha vontade pela força”.
Mas a barbárie não está apenas no ato de atirar. Ela começa muito antes, no modo como
enxergamos – ou deixamos de enxergar – pessoas como Dhemis. Vigilantes, porteiros, garçons,
entregadores e tantos outros trabalhadores da base da pirâmide são frequentemente reduzidos a
funções genéricas: “o segurança”, “o rapaz da portaria”, “o moço do estacionamento”. São vistos
como peças substituíveis de um sistema que precisa funcionar para que a roda do consumo gire.
Quando alguém se sente confortável em apontar uma arma para um desses profissionais, o recado é claro: a vida desse trabalhador vale menos do que o incômodo momentâneo de quem se sente dono
do espaço.
Outro aspecto simbólico desse caso é o local do crime: não foi num beco escuro, nem numa
área abandonada, mas num espaço de consumo, com vitrines, ar-condicionado e boa iluminação.
Em tese, um ambiente “seguro”. E, no entanto, é ali, diante de todos, que a violência irrompe. A
sensação de segurança, muitas vezes, é mais cenográfica do que real. Basta um gatilho – literal e
metaforicamente – para expor a fragilidade dessa bolha de normalidade.
Vivemos uma era em que a barbárie é, muitas vezes, mediada por telas. O horror vira vídeo
compartilhado, vira comentário, vira pauta por algumas horas. A comoção é intensa, mas breve. Se
nada muda na estrutura, o ciclo se repete: um novo caso, uma nova indignação, mais um nome que
vira estatística. O risco é nos acostumarmos a esse roteiro, transformando tragédias em parte do
“fluxo normal” da vida urbana.
Seria confortável tratar o autor do disparo como um “monstro isolado”, um desvio
excepcional em uma sociedade saudável. Não é o caso. A responsabilidade individual é inegociável
e deve ser cobrada com rigor, mas a barbárie não nasce no momento do tiro: ela é construída dia
após dia, alimentada por discursos de ódio, pela normalização da agressividade, pelo desprezo à
empatia, pela crença de que alguns corpos valem menos do que outros.
Quando toleramos humilhações públicas como entretenimento, quando ridicularizamos a dor alheia
como “mimimi”, quando naturalizamos a ideia de que conflitos se resolvem “no grito”, “na
porrada” ou “na bala”, estamos, silenciosamente, abrindo espaço para que histórias como a de
Dhemis se repitam. A arma, nesse contexto, apenas conclui um processo que começou na
desumanização do outro.
Diante desse cenário, a pergunta que se impõe não é apenas “quem puxou o gatilho?”, mas
“que tipo de cultura nós ajudamos a construir para que alguém se sentisse autorizado a puxá-lo?”.
O caso de Dhemis Augusto não pode ser arquivado em nossa memória coletiva como mais um
crime de rotina. Ele precisa funcionar como um espelho incômodo, que nos obriga a encarar
questões duras: que modelo de masculinidade estamos alimentando, em que qualquer contrariedade
vira afronta mortal? Que discurso sobre armas estamos aceitando, em que o gatilho substitui o
diálogo? Que hierarquia de vidas estamos legitimando, em que o trabalhador que assegura a ordem
é tratado como descartável?
Enquanto a família chora, a cidade comenta e o processo tramita, uma escolha se coloca
diante de nós: aceitar a barbárie como parte do “custo” da vida moderna ou fazer dela um ponto de
não retorno, um marco para revisão profunda de valores, políticas e atitudes. Se uma vida pode ser apagada por causa de uma vaga de estacionamento, é sinal de que há algo muito errado na forma
como estamos lidando com o outro – e, por consequência, com nós mesmos.
A verdadeira medida de uma sociedade não aparece apenas em suas leis, instituições ou
índices econômicos, mas naquilo que ela faz – ou deixa de fazer – quando a dignidade de um único
ser humano é pisoteada. Nesse sentido, a morte de Dhemis não é apenas um caso de polícia: é um
teste moral para todos nós.