Opinião: Barbárie humana em tempos de estacionamento irregular

Por Wlademir Mota em 03/12/2025 06:38 - Atualizado em 03/12/2025 11:38
COLUNAS
Opinião: Barbárie humana em tempos de estacionamento irregular
Wlademir Mota é presidente da ADEPTO, Delegado de Polícia Civil e Ex-Secretário da Segurança Pública – Foto: Divulgação

O que diz sobre nós, enquanto sociedade, um crime cometido por causa de uma vaga de estacionamento? Em Palmas, um homem armado decidiu que a própria irritação valia mais do que a vida de um trabalhador. E puxou o gatilho. Não foi um assalto, não foi uma disputa entre facções, não foi uma “situação de risco”. Foi uma discussão banal, cotidiana, transformada em execução.

O vigilante Dhemis Augusto Santos, 35 anos, trabalhava quando pediu a um motorista que respeitasse as regras do estacionamento. O que deveria ser apenas um diálogo firme, mas corriqueiro, ganhou contornos de confronto pessoal. Minutos depois, diante de clientes, câmeras e luzes artificiais de um centro comercial, Dhemis caiu, vítima de um disparo à queimar roupa. A cena, captada por imagens de segurança, não é apenas prova para um inquérito: é um retrato da nossa barbárie.

Há algo profundamente doente em uma sociedade em que o caminho entre o desacordo e a violência letal se encurta a esse ponto. A expressão “motivação banal”, repetida em boletins e notas oficiais, parece técnica, mas é devastadora. Estamos dizendo, em outras palavras, que já não é preciso muito para que alguém se sinta autorizado a matar: um cone, uma vaga, uma orientação de serviço bastam. A incapacidade de lidar com frustrações mínimas sem recorrer à agressão extrema é um dos sintomas mais claros da barbárie contemporânea.

A presença da arma de fogo nessa equação também não pode ser tratada como detalhe. Em muitos casos, ela deixa de ser mero instrumento de defesa e se converte em extensão do ego. A arma na cintura alimenta a ilusão de poder, de superioridade, de impunidade. Quando somamos a isso um contexto em que status econômico, símbolos de consumo e sensação de “direito absoluto” se misturam, o resultado é explosivo. A mensagem implícita parece ser: “se alguém me contraria, eu imponho minha vontade pela força”.

Mas a barbárie não está apenas no ato de atirar. Ela começa muito antes, no modo como enxergamos – ou deixamos de enxergar – pessoas como Dhemis. Vigilantes, porteiros, garçons, entregadores e tantos outros trabalhadores da base da pirâmide são frequentemente reduzidos a funções genéricas: “o segurança”, “o rapaz da portaria”, “o moço do estacionamento”. São vistos como peças substituíveis de um sistema que precisa funcionar para que a roda do consumo gire. Quando alguém se sente confortável em apontar uma arma para um desses profissionais, o recado é claro: a vida desse trabalhador vale menos do que o incômodo momentâneo de quem se sente dono do espaço.

Outro aspecto simbólico desse caso é o local do crime: não foi num beco escuro, nem numa área abandonada, mas num espaço de consumo, com vitrines, ar-condicionado e boa iluminação. Em tese, um ambiente “seguro”. E, no entanto, é ali, diante de todos, que a violência irrompe. A sensação de segurança, muitas vezes, é mais cenográfica do que real. Basta um gatilho – literal e metaforicamente – para expor a fragilidade dessa bolha de normalidade.

Vivemos uma era em que a barbárie é, muitas vezes, mediada por telas. O horror vira vídeo compartilhado, vira comentário, vira pauta por algumas horas. A comoção é intensa, mas breve. Se nada muda na estrutura, o ciclo se repete: um novo caso, uma nova indignação, mais um nome que vira estatística. O risco é nos acostumarmos a esse roteiro, transformando tragédias em parte do “fluxo normal” da vida urbana.
Seria confortável tratar o autor do disparo como um “monstro isolado”, um desvio excepcional em uma sociedade saudável. Não é o caso. A responsabilidade individual é inegociável e deve ser cobrada com rigor, mas a barbárie não nasce no momento do tiro: ela é construída dia após dia, alimentada por discursos de ódio, pela normalização da agressividade, pelo desprezo à empatia, pela crença de que alguns corpos valem menos do que outros.

Quando toleramos humilhações públicas como entretenimento, quando ridicularizamos a dor alheia como “mimimi”, quando naturalizamos a ideia de que conflitos se resolvem “no grito”, “na porrada” ou “na bala”, estamos, silenciosamente, abrindo espaço para que histórias como a de Dhemis se repitam. A arma, nesse contexto, apenas conclui um processo que começou na desumanização do outro.
Diante desse cenário, a pergunta que se impõe não é apenas “quem puxou o gatilho?”, mas “que tipo de cultura nós ajudamos a construir para que alguém se sentisse autorizado a puxá-lo?”.

O caso de Dhemis Augusto não pode ser arquivado em nossa memória coletiva como mais um crime de rotina. Ele precisa funcionar como um espelho incômodo, que nos obriga a encarar questões duras: que modelo de masculinidade estamos alimentando, em que qualquer contrariedade vira afronta mortal? Que discurso sobre armas estamos aceitando, em que o gatilho substitui o diálogo? Que hierarquia de vidas estamos legitimando, em que o trabalhador que assegura a ordem é tratado como descartável?

Enquanto a família chora, a cidade comenta e o processo tramita, uma escolha se coloca diante de nós: aceitar a barbárie como parte do “custo” da vida moderna ou fazer dela um ponto de não retorno, um marco para revisão profunda de valores, políticas e atitudes. Se uma vida pode ser apagada por causa de uma vaga de estacionamento, é sinal de que há algo muito errado na forma como estamos lidando com o outro – e, por consequência, com nós mesmos.

A verdadeira medida de uma sociedade não aparece apenas em suas leis, instituições ou índices econômicos, mas naquilo que ela faz – ou deixa de fazer – quando a dignidade de um único ser humano é pisoteada. Nesse sentido, a morte de Dhemis não é apenas um caso de polícia: é um teste moral para todos nós.

Comentários (0)