Quando o Estado puxa o gatilho: as mortes que escancaram a omissão com doentes mentais em Novo Acordo
Duas mortes separadas por sete anos e unidas pela mesma causa: a omissão do Estado. Os casos registrados em Novo Acordo (TO) — o primeiro em 2018, e o segundo, na semana passada — expõem de forma cruel como o poder público, em todas as suas esferas, responde à própria negligência com violência. Quando falha em assistir quem sequer consegue responder por seus próprios atos, o Estado terceiriza para a polícia a consequência da sua inércia.
No primeiro episódio, a vítima da omissão estatal — e não da polícia — foi seu Ademar Glória Paixão, de 69 anos, um idoso diagnosticado com transtorno bipolar. À época, apurei que ele se recusava a tomar os medicamentos que controlavam o humor. Seu Ademar era cristão evangélico e, por toda a vida, a única arma que carregou foi uma Bíblia. No entanto, em um momento de descompasso mental, trocou o livro sagrado por um facão. Naquele dia, ao resistir a uma abordagem policial, foi atingido por um disparo na perna. Socorrido, morreu horas depois, no hospital onde deveria estar antes da abordagem, recebendo tratamento e cuidado, não um tiro.
No segundo caso, a história se repete, com um roteiro ainda mais trágico. Kevin Ribeiro Gama, de 28 anos, morreu dias depois de ser alvejado em uma ação da Polícia Militar. Familiares e moradores confirmaram ao D12News que ele também tinha problemas mentais. Por causa da doença, vinha protagonizando episódios de violência na cidade — furtos, agressões, ameaças e, recentemente, uma tentativa de homicídio, cuja vítima ficou em estado grave. Familiares, por diversas vezes, buscaram uma internação para Kevin, mas sem sucesso.
A polícia foi chamada para conter o agressor. E, ao agir para evitar uma injusta agressão, terminou com mais uma morte. Para muitos, o episódio significou “sossego público”, uma falsa sensação de “limpeza social”. Mas para quem enxerga além do raso, o que fica é o eco de uma tragédia evitável. Algo a mais poderia — e deveria — ter sido feito. Não pela polícia, mas pelos setores de Saúde e Assistência Social, municipais e estaduais, que mais uma vez falharam em seu dever.
É preciso entender dois pontos essenciais. Primeiro: polícia não é psicólogo, nem assistente social, nem padre ou pastor. A função da polícia é prevenir, conter e investigar o crime, conforme determina a lei. Exigir que ela substitua políticas públicas que não existem é distorcer o papel do Estado. Evidente que há exceções e excessos — e, nestes casos, defendo rigorosa apuração e punição. Mas o problema central não está na farda, e sim na ausência de política pública de saúde mental.
O segundo ponto é o mais incômodo: quem deveria cuidar dessas pessoas são os governantes. E são eles, com sua omissão contínua, que as matam. Quando um cidadão com transtornos mentais é deixado sem acompanhamento, sem medicação, sem acolhimento e sem tratamento, o gatilho é puxado muito antes da abordagem policial — ele é puxado nos gabinetes onde se decidem orçamentos.
Enquanto isso, o mesmo Estado que falta com o mínimo — leito, médico, remédio e acolhimento — se mostra generoso para financiar shows milionários, sustentados pelo argumento cínico de que recursos da cultura e do turismo nada têm a ver com saúde. Pois bem: o público que aplaude o artista é o mesmo que sofre nos corredores das USFs, das UPAs e dos hospitais, à espera de um atendimento que nunca vem.
No fim, a conta moral dessas mortes não é da polícia. É dos governantes, que falharam em proteger quem mais precisava. Porque quando o Estado se omite, a bala que mata é a mesma que ele mandou disparar, ainda que indiretamente, contra sua própria inércia.